Didi-Huberman, fala do processo de morte e renascimento do artista no contexto da desmaterialização da arte a partir dos anos 60 no seu do artigo A arte morre, A arte renasce: a história recomeça (de Vasari a Winckelmann).
Depois de tanto tempo estranhando o que eu fazia, sentindo um desconforto como se vestisse a roupa apertada, decidi refazer o caminho. E fazer o caminho. O caminho do mar, da baía, de Guanabara.

Em uma noite do ano de 2001 assisti acidentalmente à passagem de um hiperobjeto na imensidão do céu do Atacama.
Uma nuvem em forma de ‘donut’ correu de leste à oeste aquele tapete negro de estrelas e encarou a Terra com seu olho gigante e cego.
Não foi possível outra coisa senão vivenciar e respirar fundo.
Que imagem !!
Na tentativa de eternizar aquele momento e sem ideia alguma do que havia testemunhado, peguei minha máquina fotográfica e registrei o firmamento cheio de estrelas, em negativo colorido, por um longo tempo. Resultou em uma imagem negra e cheia de pontos brancos.
No dia seguinte os jornais alardeavam o evento extraordinário: “Agujero negro en las cercanias del Atacama”.
Experienciar a presença de um objeto massivamente distribuído no tempo e no espaço em relação a nós humanos interferiu definitivamente no rumo da minha atuação como artista. A dimensão estética assustadora de um buraco negro, sua outra temporalidade e invisibilidade em alguns períodos de tempo e sua condição de objeto hiper em relação a qualquer outra entidade, tensionaram ainda mais todas as minhas incertezas sobre o meu trabalho como artista.
Foi "como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar" e me perguntasse: qual o objetivo de tudo isso em que você se meteu?
No início dos anos 2000 meu trabalho partia da experiência e uso do ritual da luz em espaços feitos pelo homem para questionar como a humanidade havia sido introduzida à ideia de representação.
Quando, ainda estudante, entendi o que era a fotografia me deslumbrei muito com os fenômenos ótico e químico implicados. Realizava, então, experimentações óticas que demonstravam como as imagens são transmitidas naturalmente pela luz, estes fenômenos óticos corriqueiros que estão no mundo e independem da ação do homem.
Meu objetivo era problematizar as percepções humanas através de movimentos que indicavam outros modos de pensamento, de representação e sistemas de crenças. E eram proposições inseridas no debate com o sistema de arte.
Depois desse dia que vi o buraco negro passando pelo céu e passei por toda fantasia que ronda o tema, acompanhada por sonhos com a terra sendo sugada pelo olho gigante, sumindo e tudo acabando, passei a desenvolver experiências estéticas sob a perspectiva da crise dos recursos naturais em um domínio regido pelo mercado.
Isso fez com que, ao longo do tempo, eu viesse a trabalhar então com plataformas mais abertas ao engajamento do discurso público.
Sempre estive consciente em não sucumbir à lógica da exploração que vem destituindo as posições políticas na arte e enfraquecendo as atitudes de resistência entre os que trabalham com a produção de cultura.
Minha práxis incorporava cada vez mais as implicações de demandas relevantes, de contextos sociais políticos econômicos da contemporaneidade onde as classes populares - a maioria da população brasileira -­ são literalmente invisíveis.
As imaterialidades e materialidades do tecido social como forma de reflexão sobre o conceito e fronteiras da arte e assim promover outras e novas esculturas sociais.
Abandonei por completo a produção de produtos artísticos e me radiquei na coisa pública.
Durante este tempo de desconstrução do ser artista que havia me tornado e não mais me reconhecia, a certa altura e não por acaso, li o romance Em Busca do Tempo Perdido.
O vazio que sentia por ser uma trabalhadora da arte cooptada pelo capital desde tão jovem; minha infância me traiu porque ela me preparou para ser uma trabalhadora, um operária da produção de futuro e portanto da minha subjetividade pé de cabra, não me avisou que tudo isso era bobagem, que era um plano de poder e que eu estava sendo moldada a acreditar tanto no trabalho da forma como contei sobre a educação nos anos 70 e 80; me pareceu resumido naquele título.
Durante 18 meses copiei catártica e obsessivamente os 7 volumes da novela em uma folha de desenho de 155cm X 275cm em busca do meu tempo perdido como artista. Havia abraçado o capeta e meu trabalho me constrangia demais.
Enfim, de tanto copiar o romance, camadas de escrita sobrepostas a mais camadas de escrita resultaram em uma massa negra com diminutos intervalos de papel ainda em branco e que para minha surpresa me levaram de volta ao céu do Atacama, ao céu do Rio de Janeiro, ao céu do caos da contemporaneidade.
Havia copiado oito mil vocábulos, todos empilhados, mas estava diante de um universo de palavras que diziam tudo e não nos salvavam de nada.
"A palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda‐se cada vez mais".
Como diz Jesse de Souza, todas as escolhas institucionalizadas ou não, que definem para onde uma sociedade como um todo pode e deve ir, são criações intelectuais. "Toda a ação de todos os partidos e tudo que se diz na mídia foram ou são também criação de intelectuais. Os intelectuais não criam, obviamente, o mundo a seu bel‐prazer, já que as ideias têm de ser articuladas com interesses econômicos e políticos poderosos para se institucionalizarem e se tornarem realidade material".
E essa é a real. Temos vivido um longo processo histórico desumanizador, já que as ideias que compuseram a modernidade se ocuparam em treinar o psiquismo mental mas não levaram em conta a totalidade do homem.





Em Busca do Tempo Perdido 2013/2014 155cm X 175cm desenho com caneta pilot

Palavras de Bachelard sobre o abuso do saber e a onisciência dos pais e educadores: "Apoia‐se sobre uma experiência de vida a previsão de outra experiência devida, sendo que as condições do progresso são tão dinâmicas que a experiência da vida passada é um obstáculo a vencer na vida presente” .
Justamente!!
Me convocava uma nova razão, dona de uma liberdade assim como o surrealismo instaurou na criação artística por exemplo.
Questionando o modus operandi que regem as estéticas políticas neoliberais, reavaliando minha própria prática como artista, recuperando saberes ancestrais da minha infância caipira e inspirada por uma passagem narrada na novela Em Busca do Tempo Perdido, passei a agenciar sobre meu corpo e corpos de outros a fim de evocar a lembrança de um determinado evento no tempo universal.
O personagem principal deste romance, ao molhar um pedaço de Madeleine no seu chá, se recordou involuntariamente de uma experiência da sua infância e "viajou no tempo".
No interior, onde passei grande parte da minha infância, era comum sentarmos em volta de uma avó para ser benzido de um mal olhado, ou ficar ouvindo histórias dos tios sobre os seus antepassados enquanto o fogão à lenha tilintava ao som da brasa que cozinhava o jantar. Ou só de passar um dia com um tio contando história e ter seu corpo todo "ativado" por narrativas fabulosas que te faziam ver um tempo não vivido na carne que te compõe, mas que aconteceu na de seus antecedentes, portanto estão nas suas células e são tuas memórias também!
E quais outras memórias? Mais antigas. Mais universais? Igual para todos?
O Big Bang.
Iniciei a série de Operações de Encantamento. A primeira, Derivas Extraterritoriais ‐o corpo não esquece, qual sua lembrança primeira?
A ideia era acessar a memória da explosão e mãe de toda energia que nos constitui, que consumimos e consumiremos até o fim: a memória do Big Bang.
Fazendo uso de um estímulo externo - um Arco Voltaico - conduzia-se uma deriva mental. A intenção era despertar a lembrança em nossos corpos, presentes, de como tudo começou neste sistema solar em que vivemos e quiçá a partir da dimensão da jurisprudência de cada corpo responder ao intolerável.
Estas Operações de Encantamento marcaram o fim de um ciclo nas minhas práticas artísticas e anunciaram outro, que Hélio Oiticica dizia ser "o artista não mais um criador para a contemplação, mas sim um motivador para a criação".
Penso o papel da arte e do artista dentro desta perspectiva, aspirando uma revisão da função social da arte, afinal há muito tem se tornado impossível não pensar a arte para além do “mundo da arte”.
O discurso da arte contemporânea, seu público, as práticas que a legitimam, onde e como ela se conforma e seus processos de apropriação e impacto não podem deixar de considerar as mediações e relações dos jogos implicados, se tornando cada vez mais urgente que se pense a arte em seus pontos cegos.
Se a arte educa, a quem educa e quem educa?
O quê educa e para quê?
A arte é produzida para qual espaço?
Para os espaços comuns ou para as galerias, museus, instituições, bienais, bolsas de valores e colecionadores?
A arte cumpre seu papel no jogo entre representar e visibilizar?
A arte contemporânea está em falta com a política e a poética de suas articulações ao deixar de abordar ativamente um problema comum e em torno deste unir seus integrantes.
É evidente a crise representacional da arte.
Para tratar destas questões tenho dedicado tempo de pesquisa em práticas artísticas compostas com e pelo tipo humano,
com suas singularidades específicas ao recorte geográfico onde elas têm se dado, na Pequena África, no bairro Gamboa, no Rio de Janeiro.


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