Há algo mais antigo que a individualização
María Iñigo Clavo

As 5 operações de encantamento aqui apresentadas são uma viagem da artista Thelma Vilas Boas em busca de um tempo esquecido pela civilização moderna e que, para ela, talvez explique o mal estar que acomete a todos.
É uma experiência da solidão, sem tagarelice, assim como “uma estrela é arremessada ao espaço vazio e ao gélido sopro de estar só".
O movimento da mostra NADA INTERESSA MAIS é duplo; tanto para o interior do ser angustiado no obsessivo ato de cavar como para o exterior no espalhamento de energia nas imagens em processo de oxidação.
Para isso a primeira operação necessária é negar a representação.
A mentora destas operações iniciou sua proposta copiando os 7 volumes da obra "Em busca do tempo perdido" de Proust durante 18 meses. Superpondo linhas de escrita sobre linhas de escrita obteve uma imagem em preto que lembra um céu estrelado, um universo que excedendo a representação faz insignificante todo o raciocínio.
"... apesar da leitura ter se tornado inviável, pulsa ali um universo de palavras que dizem tudo e não nos salvam de nada...", diz ela. Porque justamente esta é a função do pensamento: a nossa salvação.
Para realizar "Em busca do tempo perdido", utilizou-se de áudios que reproduzem a novela para assim realizar a transferência de energia da palavra escrita à palavra falada, da fala à escrita manual, da recriação das cenas perdidas da novela ao manto negro e opaco do cosmos, o luto pela memória perdida, pela representação obsoleta.
Schopenhauer entendeu o mundo como representação que só poderia ser superada através da arte. Por isso defendeu a contemplação desinteressada como um dos meios mais poderosos que nos libera da razão, contemplação do cosmos, superação da dor da nossa existência e a sua vontade.
“Cavando” na linguagem, ela se adentra na palavra repetidamente copiada até perder seu sentido. A energia trafegando desde o seu início no tempo é então re-escrita na matéria bidimensional do papel que não a impede de seguir seu trajeto, basta que a cópia de palavras se reinicie ou mesmo deixe o tempo passar e consumir o papel. Nada para, nunca.
O "Arco Voltaico" é um mecanismo de ativação da memória primeira que a artista especula termos gravada em nossas células. Durante 60 segundos o arco voltaico é acionado uma única vez nesta mostra, exibindo um plasma luminoso que remete ao princípio do mundo, o momento de solidão essencial, a explosão, catarse da matéria se expandindo em vertiginosa velocidade assim como a origem primordial do que entendemos por vida. É o acontecimento inédito da origem.
Em NADA INTERESSA MAIS tem lugar um desencontro com o produtivismo da imagem, similar àquela querela dos Românticos com o racionalismo Kantiano na era da industrialização e a administração da existência. Momento que Foucault chamou a biopolítica ou capitalização da vida mesma. A arte tinha naquele momento a função de nos liberar da normatividade e nos permitir achar a nossa subjetividade; ter acesso à experiência estética através das emoções desafiava os ditados racionalistas em torno ao gosto.
Não é por acaso que no início da sua pesquisa Thelma Vilas Boas transcreve a obra de Edmund Burke, A Philosophical Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, já que o sublime é aquele lugar de transcendência do mundano, e para isso a grandeza da natureza é um elemento fundamental. Contemplar uma paisagem ou contemplar o universo. No sublime e nestas operações de encantamento, tanto o excesso como a ausência de luz são arrebatadores.
Afinal qual é a origem da representação se não a luz?
“Ó grande astro! Que seria de tua felicidade se não tivesses aqueles que iluminas?”
A Galáxia Imaginativa é a própria luz; núcleo ou estirpe no interior de um cubo. A passagem das pessoas pela instalação deixa rastros de luzes que ao longo do tempo formam uma constelação. Estes feixes de luzes projetados nos papéis artesanalmente salgados e emulsionados com sais de prata registram o espalhamento da energia e a contaminação da vizinhança. A luz como a origem e energia consumida.
"Não existe tempo se não houver energia."
Nesta mostra acontece uma colisão com o universo, esse lugar inóspito que excede o racional. O sublime para Burke é aquele afeto que se localiza para além da nossa capacidade do saber, não pode ser objetivado por ser a manifestação do ilimitado. Assim mesmo nos abala de tal modo que perdemos a nossa capacidade de criar conceitos.
A artista Thelma Vilas Boas com suas operações de encantamentos nos oferece anteparos para que a lembrança mais primitiva, mais poderosa, seja ativada e não nos deixe na posição de meros espectadores de uma representação a ser consumida. O encontro coletivo é uma constelação particular e única em cada lugar que se dê, construída no passo das pessoas, no habitar do espaço, na ação, na experiência com a energia e o tempo. Por isso um evento em constante formação e em movimento, com suas temporalidades próprias e inesperadas.
Como disse Proust em "Em busca do Tempo Perdido": “Os dias são talvez iguais a um relógio, mas não para um homem. Como o futuro, o passado não é para ser saboreado de uma vez, mas sim grão a grão.”
Esta é a temporalidade expandida dos transeuntes, tempo-ação condesado no perfurar o cubo, no acontecer inédito do arco voltaico, na perseverância de cavar.
Dos pequenos gestos até a experiência do infinito.

Narrativa Imaginativa
Jurandy Valença

“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se oquiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei.”(Confissões – Agostinho, Livro XI)

Para nomear as coisas do mundo, Thelma Vilas Boas cria uma narrativa visual cujo discurso conceitual, suas alegorias e metáforas operam em meios distintos, em diversos suportes que de alguma forma estão ancorados no sempre intricado trânsito entre a nossa percepção, imaginação e memória.
A artista apresenta um repertório visual e literário em diálogo entre meios, categorias, gêneros e linguagens. Fotografia, cinema, vídeo, instalações, escrita, objetos, esculturas visuais e sonoras se entrelaçam para criar narrativas na qual o tempo materializa-se tornando-se imagem, som e movimento, ou todos ao mesmo tempo.
Thelma dá corpo a um território no qual a própria linguagem se [des]revela, que é seu espaço de pesquisa, de perguntas e respostas. Onde a transição é tão importante quanto a [im]permanência.
A paisagem e a passagem, a pergunta e a resposta, a cidade, o homem, a máquina e o corpo, a solidão, o coletivo, a nostalgia, o cotidiano, e alguns avessos da vida são transmutados em belezas, arrebatamentos em sua obra.
O que resta, então, são instantes que não tem duração. A geografia para se imaginar, a Hollywood tropicalizada no morro carioca-californiano, a tinta azul de
centenas de canetas PILOT que escorre e transborda de uma jarra; a escrita enxuta, coloquial e a outra, contínua e rebuscada, rascunhada, sobreposta em linhas que formam um grande palimpsesto visual proustiano.
Fraturas do tempo, da paisagem, fissuras na passagem. Intervalos na linguagem
e no tempo, aquele que requer do espectador, do observador um tempo para ficar quieto no seu Kant. Parafraseando o mesmo em Crítica da Razão Pura, me refiro a esse tempo como uma categoria do pensamento pela qual acessamos os fenômenos. Internos e externos. Onde somos atravessados, confrontados e deslocados por eles, os fenômenos, e por ele, o tempo.
Thelma se apropria desses tempos, imagens, cenas, momentos do cotidiano e objetos destituindo-os de suas funções originais, lhes dando novos significados, ou melhor lançando novas perguntas cujas respostas dependem de quem quer ver ou ouvir a pergunta.
Sua obra opera em um paradoxo no qual há uma troca simbólica que legitima fronteiras, espaços, e que sempre vai depender do ponto de vista do observador.
Nesse processo, seus trabalhos em diversos meios se tornam espaços expandidos que servem de suporte para a mediação simbólica que a artista estabelece entre o bidimensional e o tridimensional, entre o público e o privado, entre a passagem e a paisagem.
A artista compõe, assim, um artesanato sutil de palavras, imagens, sons e matérias que transitam entre meios e fins, entre a descrição [sub]o[bjetiva] do filósofo e a escrita visual e poética da artista. Entre o modo como vê as coisas, o mundo; mas, mais importante, como o apresenta mais do que o representa. Em sua busca, sua investigação a cerca do tempo, Thelma Vilas Boas nos oferece um
admirável novo mundo no qual a existência é mais autêntica e humana.
conversa com a curadora Ana Magalhães